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Pastor só tem vínculo de emprego em caso de desvio da finalidade religiosa

Assunto é polêmico na jurisprudência trabalhista.

Publicado em 07/08/2022 às 15:00

Pastor só tem vínculo de emprego em caso de desvio da finalidade religiosa (Foto: Maioria das Reclamações Trabalhistas é contra Universal; reprodução ConJur)

A Justiça do Trabalho muitas vezes se depara com pastores que buscam o reconhecimento de vínculo de emprego com suas antigas igrejas. Nas ações, pedem direitos como multa rescisória, FGTS, indenizações etc.

O assunto é polêmico na jurisprudência trabalhista. No entanto, especialistas ouvidos pela ConJur explicam que a atividade religiosa não gera vínculo empregatício. Esse é o entendimento dominante nas cortes.

Porém, há exceções. Nas palavras da advogada Silvana Neckel, que atua na área do Direito Canônico e Religioso, elas ocorrem nos casos de "flagrante desvirtuamento da atividade da igreja e, por conseguinte, das atividades desenvolvidas pelo pastor, que deixa de apenas atuar como religioso e passa a atuar na gerência e demais atividades empresariais que não guardam relação com a fé e o fenômeno religioso".

Jurisprudência

O assunto é polêmico na jurisprudência trabalhista. No entanto, especialistas ouvidos pela ConJur explicam que a atividade religiosa não gera vínculo empregatício. Esse é o entendimento dominante nas cortes.

Porém, há exceções. Nas palavras da advogada Silvana Neckel, que atua na área do Direito Canônico e Religioso, elas ocorrem nos casos de "flagrante desvirtuamento da atividade da igreja e, por conseguinte, das atividades desenvolvidas pelo pastor, que deixa de apenas atuar como religioso e passa a atuar na gerência e demais atividades empresariais que não guardam relação com a fé e o fenômeno religioso".

Os Tribunais Regionais do Trabalho adotam o mesmo posicionamento majoritário do TST. Entre as cortes que já proferiram decisões desfavoráveis aos líderes religiosos reclamantes, estão TRT-1, TRT-2, TRT-3, TRT-4, TRT-7, TRT-14, TRT-15, TRT-18 e TRT-24.

Por outro lado, TRT-2, TRT-4, TRT-11 e TRT-17 reconheceram o vínculo em determinadas situações.

No último ano, por exemplo, a corte da 2ª Região (Grande São Paulo e litoral paulista) acolheu o pedido de um pastor da Universal que recebia valor fixo mensal, tinha horários fixados pela igreja, não podia recusar transferências, recebia ordens da administração central, tinha metas para angariar recursos de fiéis e obrigações para envio de valores à sede. "Essa não é a realidade de quem faz trabalho voluntário ou por 'profissão de fé'", indicou o relator do caso, desembargador Rafael Pugliese Ribeiro.

Em 2019, o mesmo tribunal foi favorável à ação de um pastor da Igreja Internacional da Graça de Deus que recebia ordens de superiores, era fiscalizado, ganhava remuneração e não podia ser substituído. Para a 8ª Turma, a dedicação exclusiva e a obrigação de atingir metas mensais, sob pena de exclusão, desvirtuaram a finalidade religiosa do trabalho. Um ano antes, o mesmo colegiado havia reconhecido o vínculo de um pastor da Iurd que atuava como fiscal de obras da igreja.

Na primeira instância, decisões do tipo são um pouco mais comuns. Porém, a jurisprudência do TST e dos TRTs tem alcançado a Justiça local. "Cada vez menos juízes trabalhistas concedem vínculo empregatício nessas relações", aponta Thiago Rafael Vieira, presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR).

Chamado divino

Segundo Vieira, "a natureza do trabalho de um líder religioso implica a inexistência de vínculo empregatício". Já Neckel explica que "o vínculo entre o pastor e a igreja é de caráter religioso, é um chamado espiritual por meio do dom e da vocação a serviço da fé".

Conforme Gilberto Garcia, presidente da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), a função dos chamados "ministros de confissão religiosa", como os pastores, baseia-se em uma "relação transcendental, fruto de uma vocação sobrenatural, onde a igreja é o instrumento humano para o cumprimento da missão existencial de vida". Ou seja, não existe uma "contrapartida laboral".

A advogada Taís Amorim de Andrade, especialista em Direito Eclesiástico, indica que os líderes religiosos não têm intenção de seguir carreira ou crescer financeiramente: "O trabalho de cunho religioso não pode caracterizar um contrato de emprego, pois sua finalidade seria tão somente a de prestar assistência espiritual e divulgação da fé, impossíveis de apreciação econômica".

A maioria das reclamações trabalhistas envolve pastores, mas a ideia se aplica aos sacerdotes de quaisquer religiões: padres, babalorixás, rabinos, imames etc.

Em 2008, o governo federal e a Santa Sé — cúpula do governo da Igreja Católica — firmaram um acordo relativo ao estatuto jurídico da instituição no país. O tratado mais tarde foi internalizado no Direito brasileiro por meio do Decreto 7.107/2010. O artigo 16 da norma diz que o vínculo entre "ministros ordenados ou fiéis consagrados" e "as dioceses ou institutos religiosos" tem caráter religioso, e não empregatício.

O acordo trata de direitos humanos, pois envolve liberdade religiosa e de crença. Conforme os §§2º e 3º do artigo 5º da Constituição, tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Congresso com maioria qualificada têm status de emenda constitucional. Ou seja, a força do tratado está acima da lei, e portanto ele "vale mais" do que a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Embora o tratado tenha sido firmado entre a Igreja Católica e o governo brasileiro, o conteúdo se aplica também às demais organizações religiosas presentes no país. Isso porque o Brasil é um Estado laico e não beneficia uma única religião.

Elementos da relação de emprego

Os artigos 2º e 3º da CLT estabelecem requisitos que caracterizam o vínculo de emprego. Para os especialistas, tais elementos não existem na relação pastor-igreja. "A organização religiosa tem um vínculo muito distinto de empresas e organizações do terceiro setor", destaca Vieira.

A CLT exige, por exemplo, a não eventualidade da prestação do trabalho. Segundo o advogado, é muito raro líderes religiosos precisarem "bater ponto". Já Amorim ressalta que "é inerente aos serviços pastorais a execução do ministério de forma habitual".

Também é necessário que o trabalhador receba salário. Pastores geralmente recebem uma remuneração, chamada de prebenda, que funciona mais como uma ajuda de custo. "Não é uma verba salarial como a verba do empregado", diz Vieira.

Outro requisito é a subordinação. Segundo Amorim, líderes religiosos de fato estão "subordinados ao conselho e/ou dogmas e regulamentos da denominação", mas isso "significa uma subordinação de índole eclesiástica, e não empregatícia".

De acordo com Vieira, não há uma submissão empresarial. O chefe de um líder religioso é a divindade. "Quem vocaciona a atividade pastoral é Deus", exemplifica.

Na Igreja Católica, por exemplo, o papa está acima dos arcebispos, que estão acima dos bispos, que, por sua vez, estão acima dos padres. Mas a hierarquia dentro de uma igreja é meramente religiosa e baseada na interpretação da Bíblia.

"É uma hierarquia que decorre do entendimento espiritual daquela religião. Não decorre de uma submissão empresarial ou estatutária, mas, sim, do livro sagrado, dos valores e da moralidade da religião em questão", observa o presidente do IBDR.

Dado esse panorama, Amorim indica que as condenações das instituições religiosas em causas trabalhistas do tipo ocorrem mais "por falhas das igrejas do que pela existência real de um direito do reclamante".

Como não existe lei específica no Brasil para o exercício da atividade religiosa, as normas de atuação dos pastores são disciplinadas internamente pelas igrejas. Garcia diz que as organizações religiosas devem estabelecer — em seus estatutos, regulamentos ou atas — que a atuação do sacerdote "é de compromisso com sua crença, no desenvolvimento de sua vocação, sua missão pessoal, visando à propagação da fé na divindade, sem qualquer tipo de contrato legal".

Atualmente, tramita na Câmara um projeto de lei que acrescenta na CLT um parágrafo para prever expressamente a inexistência de vínculo de emprego entre as instituições religiosas e seus sacerdotes. O texto já foi aprovado pela Comissão de Constituição, Justiça e de Cidadania (CCJ) no final de junho.

Garcia acredita que há outra lacuna legal a ser suprida. O jurista lembra que a Lei do Voluntariado não se aplica às instituições religiosas. Portanto, segundo ele, é necessário "incluir objetivamente a atuação do voluntário religioso, reconhecido como aquele que exerce sua crença através de igrejas ou organizações religiosas". A ideia seria acrescentar na legislação a atividade espiritual, exercida por voluntários de fé, sem qualquer obrigação jurídica laboral.

Desvirtuamento

Os tribunais têm concedido o vínculo entre sacerdotes e igrejas somente nas situações em que ocorre um claro desvirtuamento de função, ou seja, um desvio da finalidade religiosa. Alguns pastores são tratados mais como funcionários do que como líderes espirituais.

Conforme o antigo Ministério do Trabalho e Emprego (atual Trabalho e Previdência), as funções dos ministros de confissão religiosa são: fazer liturgias, celebrações, cultos e ritos; dirigir e administrar comunidades; formar pessoas segundo preceitos religiosos; promover ações sociais; pesquisar a doutrina religiosa; transmitir ensinamentos religiosos; praticar vida contemplativa e meditativa; e preservar a tradição.

Porém, certos pastores têm chefes que lhes dão ordens não espirituais, precisam cumprir horários específicos, tomam advertências e suspensões, sofrem descontos na remuneração, recebem contracheque, fazem hora extra ou até mesmo atendem telefones, pintam igrejas e dão aulas que não de ensino religioso.

Nesses casos, as instituições mantêm uma relação de emprego, e não espiritual. Seus funcionários são cobrados aos moldes da legislação trabalhista. Assim, assemelham-se mais a uma empresa. Mas, de acordo com Vieira, isso não é muito comum entre as igrejas.

Garcia aponta que as "atribuições seculares" das organizações — como relatórios de atividades operacionais — devem ficar, preferencialmente, a cargo de outros profissionais, contratados pela igreja como empregados, que recebam direitos trabalhistas.

"Vemos igrejas crescendo financeiramente e estabelecendo um formato corporativo em todas as suas atividades, inclusive no trato com seus pastores, com exigência de metas e diversas outras posturas e exigências comuns às empresas e que não deveriam ser aplicadas no ambiente religioso", indica Amorim.

Um exemplo é a Iurd, que, segundo ela, "tem uma atuação religiosa bem duvidosa e acaba por tratar o pastor como um funcionário", apesar de não pagar remuneração rescisória ao dispensá-lo. A maioria das ações trabalhistas vem de pastores da Universal — que também é uma das maiores igrejas do Brasil, com grande número de pastores.

Metas

Amorim destaca que algumas igrejas "usam atividades comerciais para arrecadar valores ou enfatizam demais a arrecadação de dízimos, impondo metas aos pastores, sendo essas pautas mais importantes até do que a própria pregação do evangelho". Nesses casos, a fé se torna um produto, "oferecido de diversas formas remuneráveis por seus 'usuários''', e gera à igreja uma renda além do aceitável.

Já Vieira ressalta que a existência de metas, por si só, não significa desvirtuamento. É possível, por exemplo, um pastor ter a meta de que todos os seus fiéis estejam empregados. "Em alguns casos, tem a ver com a fé. Pode não ser meta empresarial", assinala o advogado.

Em muitas igrejas, o dízimo é considerado um mandamento. Ou seja, o fiel que não paga o dízimo estaria pecando. Em uma situação hipotética, a igreja estabelece a meta de que todos os seus fiéis paguem o dízimo. Nesses casos, não há como ter certeza de que a meta é voltada ao dinheiro. A instituição pode ter estabelecido a meta na intenção de que nenhum fiel peque.

Porém, se a meta for exclusivamente financeira, fica mais próxima de um desvirtuamento. Quando, por exemplo, uma igreja estabelece determinada quantia como meta de dízimo, independentemente do bem-estar religioso dos fiéis, acaba se distanciando da finalidade eclesiástica.

Para Garcia, as metas devem ser espirituais, estabelecidas pelos livros sagrados. Ou seja, é preciso evitar que a atuação do pastor seja confundida com a atribuição de "gerente espiritual".

Diferentemente dos desvirtuamentos relacionados aos requisitos da CLT, como o cumprimento de horário e ordens não espirituais, a questão das metas é subjetiva. Segundo Vieira, o juiz precisa analisar o caso concreto.

Com informações do ConJur:

https://www.conjur.com.br/2022-ago-06/pastor-vinculo-emprego-desvio-finalidade-religiosa

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